segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Sangue, vinho e vidro.

Eram duas taças na metade, e os dois, sem olhar nos olhos um do outro, as esvaziaram. E como a vida é feita em parte por grandes momentos disfarçados, e em outra parte por momentos em que é mais fácil desistir das coisas maiores, os dois, ainda sem se olhar, viraram a cabeça e desistiram de tudo.
Não é que fossem fracos, pouco românticos, nem nada. Apenas achavam aquilo tudo muito chato. As mesmas taças, o mesmo vinho pretensiosamente francês, a mesma vida, enfim.
Dias são iguais, pensaram sem dizer nada. Tudo é igual.
E ele, já pronto pra tomar outro gole, pra deixar aquilo tudo mais divertido, e pra cumprir a rotina de beber, escutar, e cama, deixou a garrafa escorregar entre seus dedos, quebrar, e manchar o tapete persa, presente da mãe dela que tinha morrido não faz muito tempo.
Verdade que não fosse isso, não haveria narrativa, ele ou ela, e nem mesmo o tapete, mas mesmo assim a moça se descontrolou.
Falou um monte. Disse palavrões finos, mas também os de vulgaridade mais acima da média, xingou da primeira à última geração do sujeito.
O tapete, disse ela, era caro e valia mais de dois mil reais. Mentira. E ela sabia que era mentira, o tapete era herança da época em que o pai tinha que fingir ter posses para casar-se com a mãe, e tinha custado uns poucos cruzeiros em alguma feira hippie.
Mas agora era a vez dela de fingir. E como eu respeito isso, cabe a você que lê respeitar também, agüentar calado, ou parar por aqui.
Agora, se você não parou, escute.
Era tudo um grande teatro, ela gritando, ele gritando desculpas, a garrafa quebrada, e o vinho, vermelho como o sangue, e roxo como o amor, espalhado nos desenhos árabes do tapete.
O caos já estava instaurado, a rotina, pelo menos por uma noite, era finda.
E ele, cansado que estava, disse que o tapete era feio e desenhos árabes são muito mais artísticos quando manchados por vinho. Ela deveria agradecer, eu concordo com isso, mas pareceu haver ali certo tom de ironia ou desrespeito, e a moça não levou isso muito friamente, por assim dizer.
Pegou um pedaço do caco de vidro que estava no chão, e foi pra cima dele, disse que queria matar. O sujeito, já impregnado da cena que ele próprio criara, resolveu dramatizar.
Tirou a camisa, ofereceu o peito, disse que a vida não valia nada, e que, realmente, o tapete persa era mais caro que ele. Que lhe matasse!
Ela foi pra cima dele, mas se arrependeu logo que a primeira gota de sangue caiu do peito nu, misturando-se ao vinho e ao vidro no chão. Chegou a ter um lapso, pensou que éramos todos constituídos por sangue, vinho e vidro, mas não deu muita atenção a isso.
A moça o tinha cortado pouco, muito pouco. Parece que enfraquecera sua coragem conforme avançava para cima dele. Ele estava sangrando, mas não muito, e ela agora o abraçava chorando, pedia desculpas.
Amaram-se ali mesmo, sobre desenhos árabes, e entre vinho, sangue e vidro.
Mas como a vida é feita em parte por grandes momentos disfarçados, e em outra por momentos em que é mais fácil desistir do que tornar maior, os dois continuaram sem se olhar, e não disseram nada sobre o que tinha acontecido, o problema da sujeira a faxineira resolveria de manhã, e nenhum dos dois tinha nada a declarar.
Ela ficou nervosa, fora intensa como nunca, e queria dizer alguma coisa. Disse.
- Estou cansada desse vinho. Acho que devíamos trocar por um português...

4 comentários:

  1. "Mas como a vida é feita em parte por grandes momentos disfarçados(...) ". Essa parte tornou o texto bem real...parece que a gente vive isso, sempre.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Concordo, mas quem vive dessa forma é por opção.

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